“Stalkear” alguém deixou de ser apenas um termo irônico usado quando uma pessoa bisbilhota a vida alheia nas redes sociais.
Desde o dia 31 de março de 2021, perseguir alguém reiteradamente, por qualquer meio (física ou virtualmente), virou crime com a publicação da Lei 14.132, também conhecida por Lei do Stalking.
Nos condomínios, a prática do stalking é comum, atingindo síndicos, funcionários, moradores e até mesmo colaboradores das administradoras.
Com a popularização de grupos de condomínio nas redes sociais e whatsapp, o crime ganha mais nuances: quando praticado por mais de duas pessoas, a pena pode aumentar! E se praticado contra mulheres ou idosos – pela sua condição – também.
Vamos esclarecer os principais pontos da nova lei, a diferença com relação a assédio, como identificar um caso, os cuidados no âmbito condominial, como se defender, além de casos reais vividos por síndicos experientes. Confira!
1. LEI DO STALKING: O QUE É E QUAIS AS SUAS PENALIDADES?
A nova Lei 14.132 acrescenta ao Código Penal o crime de perseguição, ou stalking, cuja definição é:
“Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.”
Um exemplo hipotético que caracteriza stalking em condomínio: um condômino telefona para o síndico para cobrar melhor limpeza dos corredores do condomínio. Mais tarde, este mesmo condômino interfona no apartamento do síndico e questiona a limpeza, alegando que o faxineiro não limpou o corredor. Depois, envia e-mail à meia-noite para tratar do mesmo assunto. Ele fica de olho nas câmeras do condomínio e quando vê que o síndico está no elevador, ou na garagem, se dirige até ele para tratar do mesmo assunto.
“Este condômino não difamou, não injuriou, não caluniou, mas está sempre atrás do síndico. Essa prática reiterada, ou seja, diversas vezes, constantemente, por diferentes meios, perturbando, importunando, cerceando a locomoção, a esfera de liberdade e privacidade de uma pessoa é qualificada como perseguição ou stalking“, explica o advogado Thiago Badaró.
A pena do crime de perseguição implica em:
- prisão de 6 meses a 2 dois anos
- multa cujo valor será arbitrado pelo juiz dentro do processo.
Além disso, a pena pode aumentar em 50% se o crime for cometido:
- contra criança, adolescente ou idoso;
- contra mulher, por razões da condição de sexo feminino;
- mediante a participação de duas ou mais pessoas ou com o uso de arma.
Não raro são os casos em que síndicos idosos e síndicas mulheres são alvo de críticas nos condomínios pela sua condição, além da existência de grupos de oposição que ultrapassam os limites saudáveis de reivindicações – a depender da prática, agora poderão se enquadrar na nova lei.
Badaró adiciona que o crime de stalking pode evoluir para danos morais.
“Reivindicação, reclamação, insatisfações legítimas não devem ser suprimidas pelos condôminos, mas quando começa a ferir a dignidade, honra e impede a pessoa de circular livremente, por exemplo, entra em crimes de stalking e assédio moral”, explica o advogado, que é colunista do SíndicoNet.
2. QUAL A DIFERENÇA ENTRE STALKING, ASSÉDIO MORAL E ASSÉDIO SEXUAL?
Segundo o advogado Thiago Badaró, há uma linha tênue entre as definições dos três crimes. No assédio há ofensa específica à dignidade de alguém de forma a causar um sofrimento, enquanto no stalking o crime em si está na perseguição, que como visto anteriormente, pode não haver qualquer ofensa.
SITUAÇÕES DE ASSÉDIO MORAL EM CONDOMÍNIO:
- gritos para se impor abalando psicologicamente a vítima (síndico, funcionário etc)
- insinuações de incompetência do síndico
- dar a entender que há improbidade administrativa na gestão, ferindo a moral do síndico ou de funcionários da administradora
Exemplo hipotético de assédio moral praticado por um condômino via e-mail:
Linha de assunto do e-mail: Roubo no condomínio pela administração
Texto do e-mail: “houve arrecadação das cotas condominiais e esta gestão não se prestou a pagar as contas do condomínio. Essa patifaria tem que acabar e quero meu dinheiro de volta”.
Segundo Thiago Badaró, neste exemplo existe assédio moral e crimes contra honra: calúnia (imputação falsa de crime: roubo no condomínio, sem provas), injúria (ofensa: patifaria) e difamação (ofensa à reputação: não pagou as contas).
ASSÉDIO SEXUAL:
Configura assédio sexual quando há viés, intenção sexual pelo autor do crime, que pode praticar os crimes anteriores. Segundo Badaró, isso é comum quando há relação hierárquica de superioridade do criminoso com a vítima ou de influência em função do cargo da pessoa.
O síndico profissional Pedro Cunha relata que em um condomínio sob sua gestão um zelador perseguia com viés sexual as funcionárias, fazendo convites para motel, constrangendo-as. “Elas começaram a reclamar para as moradoras, que me reportaram e ele acabou demitido.”
Em uma outra situação, desta vez em um condomínio comercial, um funcionário se apaixonou por uma condômina e começou a persegui-la.
“Ele sabia os horários em que ela chegava ao prédio, ia ao carro para abordá-la. Como tinha acesso às informações cadastrais dela, mandava mensagens no whatsapp se declarando. Ela e o marido entraram em contato com a gerência e o funcionário foi transferido”, conta Pedro Cunha.
Se os casos tivessem acontecido depois da publicação da lei, ambos se enquadrariam em crime de perseguição.
“Essa lei abre a possibilidade de defesa das vítimas e acende um alerta para que as pessoas com esse tipo de atitude se conscientizem de que podem ser punidas. Espera-se que haja mais cuidado com o que falam e publicam”, diz o síndico profissional.
3. QUAIS SITUAÇÕES SE ENQUADRAM COMO STALKING EM CONDOMÍNIOS?
Lembrando que para caracterizar crime de perseguição, a prática precisa ser reiterada por qualquer meio, seja presencial ou digital, e até mesmo praticada por pessoas de um mesmo grupo, que por vezes adotam estratégia de “rodízio” na abordagem à vítima:
- telefonema
- interfone
- registros no livro de ocorrências
- abertura de chamados no site ou app
- envio de mensagens ou áudios no whatsapp
- publicação de mensagens em redes sociais
- publicação de mensagens em grupo nas redes sociais/whatsapp
- abordagem no elevador
- abordagem na saída do carro
- abordagem na entrada do prédio
- abordagem na porta da unidade da vítima
- abordagem nas áreas de lazer, em momento privados
A síndica profissional Taula Armentano há anos sofreu perseguição de um grupo de condôminos que não economizou esforços, estratégias e tempo para importuná-la.
“As ações dessas pessoas tiveram viés político e pessoal. Eram contra tudo o que era feito no condomínio. Elas queriam comandar e fazer prevalecer a sua vontade em detrimento da coletividade”, conta a gestora, que teve apoio e aprovação da massa condominial que a reelegeu com mais de 85% dos votos.
Do simples envio de e-mails formalizando solicitação de esclarecimentos, questionando ou criticando ações da gestão, esse grupo entrou na seara da perseguição quando passou a enviar e-mails com intervalos de 1 hora, mensagens no whatsapp e nas redes sociais particulares a qualquer hora do dia, chegando a aparecer em concorrências de condomínios que Taula participava.
“Não me davam descanso perguntando e reclamando de coisas relacionadas à gestão e decisões dos condôminos. Eu não tinha sossego. Eram atitudes que me prejudicavam mental e psicologicamente. Eu me sentia acuada, com medo do que eles eram capazes de fazer. Quando aconteceu, não tinha a Lei do Stalking”, relata.
O empresário Eric Paçó é integrante do corpo diretivo de um outro condomínio em que Taula atua e foi testemunha da perseguição desse grupo, que começou a incitar uma campanha contra ela ao influenciar condôminos com documentos falsos ou distorcidos e a enviar uma enxurrada de notificações extrajudiciais questionando tudo o que a gestão fazia, fugindo ao razoável.
“Se somar, há mais de 2 horas de áudios enviados em grupos de whatsapp com acusações, cujos disparos eram a cada 2 dias. Todas as vezes em que eu fui ao escritório da administração, sempre tinha alguém desse grupo do lado de fora esperando para abordá-la“, conta Eric.
O condomínio ratificou a permanência da gestão em uma assembleia com mais de 70% de aprovação, mostrando que o bom trabalho feito prevaleceu. “Taula se mostrou muito aguerrida e que não abre mão de uma gestão democrática – isso era o que almejávamos”.
Com o advento da nova lei, Taula buscou escritório de advocacia especializado para tratar o caso na esfera judicial.
“Agora temos respaldo jurídico e os síndicos não devem se calar e nem aceitar situações de perseguição. Medidas judiciais nas esferas cível e criminal podem ser acionadas, caso os episódios persistam no tempo, e perseguições dessa natureza não podem vigorar para sempre, atrapalhando o trabalho profissional realizado e a própria vida particular”, adiciona a síndica profissional.
4. QUE TIPO DE PROVAS SÃO EXIGIDAS PARA FAZER VALER A LEI?
O advogado Thiago Badaró explica que o crime de perseguição pode ser evidenciado com os mais variados tipos de provas, desde que demonstrem a prática reiterada, como datas das ocorrências para atestar que houve continuidade. Veja alguns exemplos:
- e-mails
- registros de abertura de chamados em site e app
- registro em livro de ocorrência
- prints de mensagens de whatsapp
- prints de mensagens em grupo de whatsapp/redes sociais
- gravação de interfone/telefonemas
- áudios de whatsapp
- imagens de CFTV
- prova testemunhal de pessoas que viram a prática acontecer
5. QUAIS AÇÕES PREVENTIVAS PODEM SER TOMADAS PARA EVITAR CASOS NO CONDOMÍNIO?
O síndico pode agir proativamente para prevenir que casos de perseguição ocorram em seu condomínio, seja envolvendo colaboradores, moradores, administradora e ele mesmo.
- Elaborar procedimentos de prevenção e apuração de stalking: solicite à sua assessoria jurídica ou a um advogado especializado a elaboração de procedimentos para prevenir, apurar, identificar e interromper a prática. O documento, que pode contar com a colaboração do síndico e do conselho, pode listar quais situações podem ser configurados como o crime, além de dizer o que o funcionário deve fazer, como procurar o síndico (funcionário orgânico) ou o superior (terceirizado), para que este procure o síndico e as providências sejam tomadas.
- Treinamento dos colaboradores: entregar esse documento a todos os funcionários e dar uma palestra explicando cada ponto, exemplificando com situações comuns em condomínio e como devem agir.
- Comunicação aos moradores: elaborar uma comunicação preventiva, incluindo palestra ministrada por advogado, explicando do que trata a nova lei, que a prática agora é crime, os cuidados que se deve ter na maneira de se expressar para que não haja prejuízo no dia a dia deles.
É comum, por exemplo, o funcionário ser abordado por moradores perguntando sobre a rotina do síndico ou de vizinhos, que horas chega, onde está, o que está fazendo, aparentemente de forma despretensiosa e inofensiva. Esse pode ser o início de uma perseguição, por isso, orientação é fundamental.
6. COMO FICAM OS GRUPOS DE WHATSAPP E DE REDES SOCIAIS?
Quem participa de grupos de condomínio no whatsapp ou no facebook certamente já testemunhou manifestações mais “acaloradas” por parte de moradores menos contidos, irritados ou mal-educados mesmo.
“Há pessoas que usam desses meios, em que não há o olho no olho, para extravasar. Fala-se muitas vezes barbaridades contra síndico e contra vizinhos, que acabam ampliadas pelo incentivo à manifestação de outros que não conhecem o caso em si. Cria um ambiente ruim, fere pessoas”, opina o síndico profissional Pedro Cunha.
Ele, que não participa de grupos de condomínios clientes, já sofreu na pele perseguição nas redes sociais. No seu caso, um inquilino não ficou satisfeito com uma decisão tomada em assembleia e começou a persegui-lo pelas redes sociais por mais de um ano.
“O morador enviou reiterada mensagens agressivas nas redes sociais da empresa e nas minhas particulares, entrou em contato com familiares e amigos para me difamar. As pessoas se sentem no direito de expressar sua raiva ao síndico por serem contrariadas, não terem suas vontades atendidas”, desabafa Cunha.
Na época, o caso foi caracterizado como danos morais. Com a nova Lei do Stalking, Pedro Cunha teria conseguido se defender de forma mais fácil e rápida
Afinal, qual é a etiqueta a ser adotada pelos moradores ao se manifestar nos grupos e não incorrer em stalking?
“Liberdade de expressão é garantida pela Constituição. As solicitações, providências e exigências do condômino devem ser embasadas, de maneira cortês. Espera-se que a comunicação melhore e fique mais respeitosa nos grupos a partir da nova lei“, diz o advogado Thiago Badaró.
7. QUAL O LIMITE DA RECLAMAÇÃO DE UM CONDÔMINO PARA NÃO CONFIGURAR STALKING?
E quando o condômino registra suas reclamações ou solicitações pelos meios oficiais e de forma respeitosa, mas não é atendido e reitera os registros na tentativa de se fazer ouvir?
“O síndico tem atribuições previstas no artigo 1348 do Código Civil. Se não as está cumprindo e há omissão de atendimento, o condômino pode entrar com processo judicial contra o síndico, apresentando provas de que o pleito não foi atendido, que há negligência no exercício das atividades etc.”, orienta o advogado Thiago Badaró.
Como visto, o condômino tem direito de reclamar, mas deve ser cauteloso para não exceder esse direito e acabar configurando sua atitude em perseguição.
8. STALKING PODE SER INCLUÍDO NO REGULAMENTO INTERNO?
O advogado Thiago Badaró explica que o condomínio pode incorporar perseguição como infração no seu Regulamento Interno ou Convenção, destacando que as medidas administrativas internas não excluem a possibilidade de ingresso de ação judicial por parte da vítima.
“Sempre que houver uma ocorrência, sugiro criar uma comissão interna para apurar o stalking de forma imparcial. Sendo reconhecido o fato, aplicar as medidas administrativas (advertência e multa na reincidência), que podem gerar provas para uma futura ação judicial”, orienta.
Essa comissão pode ser instaurada com provas concretas ou até um boletim de ocorrência, para que não aconteça calúnia ou uma denúncia falsa de crime.
Para que haja imparcialidade, a comissão interna deve ser formada por pessoas que não configurem conflito de interesse com os envolvidos, como vizinhos mais próximos ou que tenham amizade.
Fontes consultadas: Thiago Badaró (advogado), Pedro Cunha (síndico profissional), Taula Armentano (síndico profissional), Eric Paçó (conselheiro).